Tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo acabaram por causar uma sensação de que as autoridades da área de justiça e segurança atuaram mais de forma reativa do que ativa – o que não é exatamente uma verdade, conforme disse à Agência Brasil o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Renato Sérgio de Lima.
Na avaliação do especialista, os acontecimentos foram “atropelando a agenda e as ações”, o que acabou tornando “turbulentos” os 100 primeiros dias de governo. Assim sendo, “o debate sobre os temas acabou perdendo espaço” em meio a um cenário que “apresenta as ações [implementadas] como se fossem reações [a factuais]”, disse Lima.
“O governo precisa agora recuperar a dianteira que teve no primeiro dia, com o decreto de armas, para poder pensar a divulgação e o detalhamento de políticas como, por exemplo, as do Plano Amazônia mais Segura (Amas) e do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci)”, completou.
“O governo começou o ano com o decreto de armas, uma importante iniciativa”, lembrou Renato Sérgio de Lima, referindo-se ao decreto presidencial que suspendeu novas autorizações de porte para armas, pelos CACs – colecionadores, atiradores e caçadores.
O mesmo decreto foi elogiado e considerado "primeiro acerto" pela professora de Ciências Criminais do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) Carolina Costa.
Para a advogada, a revisão das normas que flexibilizaram a compra de armamentos e o Estatuto do Desarmamento têm importante papel para a regulação e o controle de armas no país. Ela destacou a importância da revisão ocorrer no momento atual, após o governo Bolsonaro ter promovido “uma flexibilização completamente desmedida”, visando armar a população brasileira.
“A retomada do controle dos armamentos e da comercialização destes no Brasil é algo bastante urgente, especialmente para redução dos índices de violência e da sensação de insegurança da população que, diante do aumento do número de armas em circulação, se vê insegura e em risco, especialmente quando pensamos em mulheres e crianças”, disse.
Tendo como referência números do Monitor da Violência, Renato Lima, do FBSP, diz que o número de homicídios no Brasil cresceu mais de 6% no último trimestre do ano passado.
Ele também correlaciona esse aumento às facilidades criadas durante o governo Bolsonaro para o acesso da população a armas.
“Isso sinaliza para um 2023 preocupante, porque, se a tendência se confirmar, teremos aumento dos homicídios, muito em função de questões que não foram tratadas durante o governo anterior, como por exemplo a implementação do SUSP [Sistema Único de Segurança Pública]”, acrescentou. De acordo com o especialista, a iniciativa tende a receber bons investimentos governamentais.
Os dois especialistas destacam a retomada do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) como uma das mais importantes políticas públicas do atual governo.
Lançado no dia 15 de março, o novo Pronasci já tem R$ 700 milhões previstos para investimento em ações sociais de segurança pública, em prevenção, controle e repressão da criminalidade. A primeira edição do programa foi lançada em 2007 durante o segundo mandato do presidente Lula.
Os eixos do Pronasci estão alinhados com o Plano Nacional de Segurança Pública, que tem como objetivo reduzir a taxa de homicídios para abaixo de 16 mortes por 100 mil habitantes até 2030, e de baixar as taxas envolvendo mortes violentas de mulheres e de lesão corporal seguida de morte.
Executado pela União em cooperação com estados, Distrito Federal e municípios – mediante programas, projetos e ações de assistência técnica e financeira –, o novo Pronasci inclui em seus eixos a prevenção e enfrentamento da violência contra a mulher e combate ao feminicídio.
Os outros quatro eixos do programa tratam do fomento às políticas de segurança pública com cidadania em territórios com altos indicadores de violência e com grupos sociais mais vulneráveis; fomento às políticas de cidadania com foco no trabalho e ensino formal e profissionalizante para presos e egressos do sistema prisional; apoio às vítimas da criminalidade; e, finalmente, combate ao racismo estrutural e a todos os crimes dele derivados – com ações afirmativas para a população negra aliadas ao enfrentamento da pobreza, da fome e das desigualdades.
Na cerimônia de lançamento do programa, o presidente Lula disse que o Pronasci fortalece a área de segurança, garantindo a presença do Estado não apenas com polícia, mas com ações de promoção da cidadania.
“Com a recuperação desse programa a gente passa para sociedade a ideia de que o papel do Estado é cuidar das pessoas antes de cometerem qualquer delito, e cuidar depois que a pessoa comete, mas na perspectiva de fazer com que volte a ter uma convivência social e tranquila”, disse Lula.
“Sobretudo, temos que trabalhar na perspectiva de salvar a periferia deste país. É na periferia que está grande parte da nossa juventude; grande parte das pessoas com potencial cultural e profissional extraordinário, que não têm condições de sobreviver porque são pegas de surpresa por bala perdida ou são pegas por ocupação policial”, acrescentou.
No evento de lançamento do Pronasci, o ministro Flávio Dino disse acreditar que tais ações vão garantir a redução da violência “e uma maior integração entre políticas sociais e as ações da polícia”.
Já a coordenadora do programa, Tamires Sampaio, disse que o Pronasci “constrói uma noção de que, fortalecendo agentes e equipamentos de segurança e garantindo que a população tenha acesso à educação e à cultura, vamos garantir que os índice de violência e de criminalidade no país vão diminuir”.
Para Carolina Costa, do IDP, o Pronasci se distingue das políticas de repressão, uma vez que prioriza mecanismos de polícia comunitária, visando à aproximação entre forças policiais e comunidade.
“Em um contexto de extrema violência, em que comunidades vulneráveis se sentem ainda mais desprotegidas por conta de uma atuação extremamente despreparada da polícia, o Pronasci representa uma excelente iniciativa para que possamos retomar o diálogo entre as forças de segurança e a comunidade”, disse ela à Agência Brasil.
No início de abril, a visita do ministro Flávio Dino ao Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, mostrou vontade política no sentido de aproximar autoridades e comunidades vulneráveis.
A iniciativa, no entanto, acabou sendo criticada por opositores do governo federal, sob o argumento de que a visita representaria uma “conivência” do ministro com “criminosos que atuam na favela”.
Em resposta, Flávio Dino disse considerar “esdrúxula” a afirmação, sustentando que ela seria resultado de preconceito contra os moradores da comunidade.
Outra política pública do governo federal destacada pelos especialistas consultados pela reportagem é a Estratégia Nacional de Políticas de Drogas, conduzida pela Secretaria Nacional de Drogas.
Para a professora de Ciências Criminais do IDP, a definição de uma estratégia para reorganização dessa política é “absolutamente necessária, e fica ainda mais fortalecida graças à participação da sociedade civil nas discussões.
“Uma iniciativa que está em curso, e que será divulgado em breve, é a retomada do Conselho Nacional de Política sobre Drogas, com uma participação mais efetiva da sociedade civil. Uma discussão aberta sobre os rumos da política de drogas no Brasil é algo absolutamente importante no contexto brasileiro, sobretudo se analisarmos as [altas] taxas de encarceramento por tráfico de drogas”, complementou a advogada.
As políticas públicas citadas por Carolina Costa estão sendo tratadas de forma transversal pelas autoridades, em especial com relação à organização do planejamento, bem como da execução e da avaliação. O governo, inclusive, tem promovido eventos em que o tema é debatido de forma ampla, com a participação dos ministérios da Saúde; da Igualdade Racial; da Justiça e Segurança Pública; de secretarias e organizações internacionais, além de representantes da sociedade civil e parlamentares.
“Durante o governo Bolsonaro, as políticas eram bastante estanques: muito isoladas e sem participação social. No atual governo temos outra perspectiva, com retomada da participação da sociedade civil e com a atuação de diferentes ministérios”, argumentou a advogada.
“Quando a política pública é pautada de forma transdisciplinar, essa participação acaba sendo quase natural, além de muito mais incentivada. Quanto mais parceiros e parceiras nós tivermos para condução de políticas públicas, maior será a efetividade e maior será a participação democrática nessas políticas públicas”, complementou Carolina.